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PEDRO QUARTIN GRAÇA

Blog pessoal criado em 2003

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25.06.08, Pedro Quartin Graça

O povo já não é sereno

Inês Pedrosa

EXPRESSO - 8:00 Segunda-feira, 23 de Jun de 2008

O POVO, em geral, é sereno, sim - mas quando o desrespeito das cúpulas por ele toca as raias da obscenidade, deixa de o ser. Digo cúpulas, porque não consigo chamar "elites" a estes eurocratas eurocraticamente distribuídos por todos os países da Europa, que começam por não saber, sequer, comunicar o que pensam, ou pensar o que comunicam.
A Europa que existe, de facto, existe apesar deles - por esforço das universidades, da ciência, do conhecimento, das empresas.
Fizeram, de cima para baixo, uma Constituição europeia que foi chumbada - porque o povo pode não perceber muito de política, mas tem a ideia, cândida e inteligente, de que a Constituição é a lei fundamental, e que, por isso mesmo, não pode ser uma coisa cozinhada nas suas costas, cheia de ingredientes desconhecidos e apresentada como prato obrigatório.
Os cérebros mudaram então umas vírgulas ao arrazoado em burocratês, cortaram-lhe uns parágrafos para parecer mais esguio e atraente, rebaptizaram-no como Tratado e voltaram a servi-lo, em modelo "nouvelle cuisine".
O povo, criado a batatas e feijão - e carne à peça, quando podia ser, ou peixe à posta, nem que fosse sardinha, quando havia gasóleo para o pescar -, não apreciou a sofisticação da coisa.
O veto da Irlanda é o primeiro sinal disso. Não creio que se trate de um veto político, no sentido nobre e fundo da palavra, porque esse sentido anda desaparecido. Sobrou a politiquice triste, obscenamente triste, dos arranjinhos de interesses. A Política está amordaçada e amarrada no sótão dos desperdícios da Economia. Muito se rirá Marx, lá da sua nuvem: não lhe deram razão os seus, deram-lhe os outros.
Que a Europa existe, mostrou-o a gigantesca manifestação de pescadores revoltados de vários países, em Bruxelas. Diziam: "Já que os governantes dos nossos países nos dizem que a culpa é de Bruxelas, viemos aqui pedir-lhes contas."
Se os partidos políticos locais alternam no poder como as donzelas vienenses mudavam de par nos bailes, com muitas vénias e voltas para regressarem ao mesmo, não se percebe para que continuam a existir. Emma Bonino apenas se antecipou com a proposta de um - aliás, interessantíssimo - Partido Radical, que pretendia europeu.
Foi impaciente e pragmática, coisa que sucede muito às mulheres, habituadas que estão a fazer duzentas coisas ao mesmo tempo enquanto os homens burocratizam a favor uns dos outros.
Não quis usar os punhos de renda e o palavreado vago que fazem o esplendor atávico da União Europeia. Mas percebia o que vinha aí. E o que tem vindo aí é o crescimento da pobreza e da exclusão na Europa rica e supostamente tolerante.
Esta Europa que criou guetos de imigrantes e depois, para armar em ecuménica, fecha os olhos aos "crimes de honra" dos fundamentalistas islâmicos que matam as filhas (na Holanda, por exemplo), ou começa mesmo a aplicar a lei islâmica (recentemente, um tribunal francês aprovou um divórcio por "falta de virgindade" da mulher). A Europa obcecada com o défice, que responde com a crueldade dos números ao desespero dos abandonados pelo sistema.

Em Portugal, os tais números indicam uma coisa grave: a desigualdade social está a crescer. A classe média sente cada vez mais dificuldades no seu dia-a-dia e endivida-se para além do possível - porque já deixou de acreditar em qualquer mudança. O Governo parece não entender que o capital de esperança e boa vontade das pessoas também se esgota - e está esgotado. A população aceitou a necessidade dos sacrifícios - de outra maneira não teria dado a este Governo a maioria absoluta. Mas não se pode pedir às pessoas que continuem a sacrificar-se e pagar aos gestores públicos as somas escandalosas que se lhes pagam.
Um dia é a notícia de mais meia dúzia de reformas chorudas, no dia seguinte a troca de bólides xpto por bólides xpto mais y dos juízes do Tribunal Constitucional. Não se pode afirmar que não há dinheiro para o essencial e gastar milhares de euros em operações de propaganda (mesmo que seja da célebre "identidade nacional", até porque o País é suficientemente velho para dispensar os problemas narcísicos). Ou em exposições de atordoar burgueses. Ou em eventos para apaparicar a internacional dos ricos.
Não se pode encandear com "projectos" supostamente culturais um país que ainda não tem uma cultura mínima de pão, habitação e justiça para todos. E não é com computadores nas escolas e com a promessa de uma grande vida virtual para todos os portugueses que este sentimento crescente de injustiça se resolve. Não dá mais. A ostentação dos poucos que tudo podem torna-se pornográfica face à pobreza envergonhada dos muitos que vivem com 500, 600 ou 700 euros por mês. E são muitos. E estão no limite. E não têm nada a perder - a não ser a serenidade, o acatamento em que foram criados.
O medo do futuro é a fonte da cobardia que mantém privilégios e submissões. Mas os portugueses já não acreditam no futuro - por isso vibram tanto com a velocidade do golo, no futebol. Vitória fácil, imediata, açúcar rápido. E depois?