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PEDRO QUARTIN GRAÇA NO PLENÁRIO DA ASSEMBLEIA DA REPÚBLICA
Senhor Presidente,
Senhores Deputados,
Quis o regimento desta Assembleia que eu me pronunciasse a 31 de Janeiro, data de uma longínqua revolução republicana no Porto. Neste lugar, já outros evocaram a data, com o respeito pelos homens que fizeram o 31 de Janeiro, ou que o prepararam no campo das ideias.
Também eu quero homenagear o patriotismo e a isenção desses revoltados porque eles faziam da acção política alguma coisa mais do que servir interesses. Esse exemplo de arranque nacional para uma obra concreta em favor das comunidades, o apelo às raízes, a entrega ao bem comum, foi o que ficou.
A dar-lhe o ardor das grandes horas colectivas, havia o sentimento da honra nacional ferida pelo Ultimatum. Para o homem comum, o 31 de Janeiro foi o gesto heróico de um povo que acabava de sofrer o insulto e o esbulho por parte da superpotência da época. E também D. Carlos logo devolveu à rainha Vitória de Inglaterra as condecorações com que o agraciara. Humano e generoso se mostrava também quando, após a revolução frustrada de 31 de Janeiro, referindo-se às prisões dos revolucionários, o Rei recomendava que fossem bem tratados, pois «eram criminosos de pensamento e de ocasião»...
No calendário, o 31 de Janeiro é seguido pelo 1 de Fevereiro e é sobre ele que me quero pronunciar, destacando as figuras europeias de D. Carlos e de D. Manuel II como Chefes de Estado.
O que mais impressionou sempre os que conviveram com D. Carlos era o seu à vontade, o seu natural desembaraço. Pela sua vasta cultura geral, e conhecimento das línguas, a sua informação sobre as grandes questões internacionais, D. Carlos foi por certo um dos monarcas mais europeus do seu tempo.
Com efeito, para se compreenderem as atitudes do Rei a cujas intenções a História começa a fazer justiça, em livros, filmes e inquéritos à opinião, é preciso ter presente que D. Carlos era um Europeu. A sua visão dos problemas, o seu julgamento dos homens, a sua consciência dos tempos, tinham aí o seu ponto de partida. E, foi esse seu modo de ser, que o ajudou na difícil missão, de nos tirar da situação desesperada em que nos deixara o «Ultimatum». É ele que vai ajudar a reconquistar o prestígio perdido.
Compreendendo o valor de um Chefe do Estado isento e prestigiado, e sabendo manejar os interesses e ambições alheias, D. Carlos salvou a posição internacional de Portugal.
Foi no discurso no Guild Hall que conquistou a amizade do futuro Eduardo VII, e a estima dos meios políticos de Londres, de que então dependiam os destinos internacionais.
Em Paris contribui para a formação da Entente Cordiale de uma maneira que os ingleses tanto reconheceram. E os resultados da acção de D. Carlos manifestaram-se com as visitas a Lisboa, dos Reis da Grã - Bretanha, o imperador da Alemanha, o Presidente da Republica Francesa e os Reis de Espanha.
D. Carlos não foi um génio que a si próprio se julgasse superior. Nenhuma atitude de soberba ou de vaidade pessoal, a História nele regista. Nem mesmo quando foi o centro político da governação de João Franco, pretendeu partilhar as exterioridades do Poder e do Mando.
D. Carlos quer incitar Franco a prosseguir a acção. Escreve-lhe cartas ardentes, entusiásticas. Mas não surge nelas uma palavra de vã glória pessoal ou reveladora do seu apetite de mando.
Antes, bem se nota que só deseja insuflar o seu ardor ao seu Primeiro-ministro para que ele tenha confiança em si próprio e na sua obra.
Assassinados a 1 de Fevereiro, D. Carlos e o Príncipe Real D. Luiz Filipe, o trono passou àquele que Infante nascera, e para simples Infante fora educado. O Infante D. Manoel assumiu as responsabilidades de ser rei.
Conta-se que um dia, ao ser distribuído o bolo-rei num jantar do Paço, cada um dos convivas procurava na sua talhada, a prenda habitual (antes da ASAE...). Saíra ela ao Príncipe Real que, num gesto de gentileza, a passou disfarçadamente ao Infante. E como alguém lhe perguntasse porque procedera assim, o Príncipe Real respondeu: - Deixe! Ele será Rei sempre que eu possa! E nesse jantar, bebeu-se à saúde do Rei D. Manoel.
Anos volvidos, o Infante subia ao trono, em circunstâncias trágicas.
Nasceu em 15 de Novembro de 1889, dia da proclamação militar republicana no Brasil, e viveu até aos 18 anos em época sombria para a dinastia de Bragança, dada a revolta dos ambiciosos, e a cólera dos medíocres.
Esse ambiente de tempestade, estimulada pela falta de qualidade dos velhos partidos políticos, levou ao crime de 1908, privando o país de D. Carlos, cuja obra inconfundível se está hoje impondo, e
de um Príncipe que era então uma esperança.
A 1 de Fevereiro de 1908, o Infante D. Manoel tomou nas mãos a Realeza de Portugal.
Todos os que o conheceram desde a infância até esse dia trágico, confirmaram a sua bondade, a sua simplicidade, a sua modéstia, a sua sinceridade, a sua inteligência, o seu amor ao saber, o seu culto pela arte, e o seu desejo de bem servir.
A 3 de Outubro, no dia em que mataram Miguel Bombarda, estava D. Manoel II a despacho, assinando os diplomas do Estado. Quando lhe dão a notícia com expressão depreciativa sobre o assassinado, o rei pousou a pena, e observou: «Porque chama isso ao Bombarda? Porque é republicano? Não é razão.
Todos têm o direito de ser o que quiserem ... »
Para D. Manoel II, só existia uma expressão – Portugal, e dentro de Portugal, só conhece portugueses.
Durante o exílio, ninguém lhe ouviu uma palavra desdenhosa ou ofensiva para o país que não o compreendeu; nem contra a desorientação dos partidos monárquicos. Não se queixou aos Soberanos nem aos Governos estrangeiros.
Chefe de Estado por vontade da história, e aclamado rei pelo Parlamento, nada devia a Realeza aos caprichos de qualquer partido, a qualquer grupo de interesses, ou a um sufrágio artificial.
Ainda em Portugal, o problema da classe operária preocupara-o tanto, que no meio da agitação politica tempestuosa, é para ela que a sua atenção se dirige.
Exilado, defende intransigentemente as posições de Portugal durante a 1ª guerra mundial. E morto em circunstâncias ainda por apurar, não se lhe conhece qualquer apoio à 2ª república, o Estado Novo de Salazar, que sobre as suas cinzas ainda quentes, criou uma imagem da inevitabilidade republicana, esbulhando os descendentes do duque de Bragança de um património em que nem a 1ª República se atrevera a tocar.
Senhor Presidente, Senhores Deputados,
Passaram cem anos desde o 1 de Fevereiro.
As transformações político-sociais em curso e os processos inerentes à globalização, cada vez mais exigem pensar globalmente e agir localmente. Cada vez mais carecemos de uma valorização dos factores locais, comunitários e ecológicos que ao longo dos séculos, consolidaram Portugal e conformaram o nosso território.
O recente Tratado de Lisboa veio uma vez mais comprovar que a Europa normal é a que resulta das negociações intergovernamentais entre Estados soberanos, deixando para segundo plano a miragem de uma federação europeia.
O prestígio próprio e institucional do Chefe de Estado e a identificação espontânea e afectiva entre a comunidade portuguesa e o seu representante máximo são cada vez mais indispensáveis para o reconhecimento externo e para vitalidade interna do país europeu, atlântico e lusófono que somos.
Nestas circunstâncias, é necessário e legítimo que os portugueses se interroguem sobre se a Chefia do Estado deve apenas depender, como a actual Constituição estabelece, de um acto eleitoral cada vez mais objecto de absentismo; ou se, pelo contrário, deverá processar-se mediante uma escolha simultaneamente ética, cultural e histórica, uma escolha legitimada por consenso democrático e assente na sua ligação às raízes de Portugal.
Parece claro que, na sua maioria, os portugueses não são maioritariamente nem monárquicos nem republicanos; são democráticos. Mas, chamados a debate, querem "o bem da república" no sentido clássico do bem comum. E, convidados à reflexão, reconhecem que a Instituição Régia que observam nas modernas monarquias europeias – e com os exemplos muito recentes do prestígio do rei dos Belgas, da rainha de Inglaterra e do rei de Espanha – é a melhor garantia de equidistância perante as demais instituições nacionais e perante os Estados nossos parceiros na União Europeia.
Cem anos depois do duplo crime do 1 de Fevereiro, não é sensato que o país continue a desperdiçar esse tesouro que outros povos souberam preservar: a independência e a dignidade institucional do Chefe do Estado por meio das instituições monárquicas.
Um monarca tem, de facto, condições para promover com eficácia e isenção a solidariedade nacional e a independência do poder judicial e das Forças Armadas, bem como para projectar a nossa representação externa com prestígio e continuidade.
É esta a reflexão que aqui deixamos, convictamente seguros de que os Reis hão-de regressar, mas que só o farão com o apoio e correspondendo ao apelo do Povo português.
Como reprovamos o comportamento daqueles que, por despacho, impedem agora a participação de bandas militares na evocação de um antigo Chefe de Estado de Portugal.
O DEPUTADO
PEDRO QUARTIN GRAÇA